Ano 5 | Nr.58 | maio 2020
Edição Especial: Viagens Aéreas e COVID-19
O Viajante do Desconfinamento
Entre março e maio de 2020, o que semanas antes teria parecido um cenário quase impensável, acontecia pela primeira vez na história das epidemias e pandemias modernas: em momentos e graus variáveis, mas sem margem para dúvidas, as rotas de transporte aéreo de passageiros em todo o mundo entravam em “quarentena”. Em aeroportos por todo o planeta, no rastro das medidas de contenção e prevenção da COVID-19, perfilavam-se aviões com as suas caudas coloridas em silenciosa imobilidade. Em espelho, as Consultas do Viajante, dominadas pelas questões de quem queria voltar para casa de forma segura, entravam também progressivamente num estado de semi-hibernação.
Com o início em vários países, como Portugal, de uma nova fase de procura do regresso progressivo a alguma normalidade e à medida que se experimenta o desconfinamento, governos, comunidade científica e organizações internacionais procuram vias seguras para esta retoma, ainda pautada pela incerteza da evolução epidemiológica e da falta de ferramentas de apoio robustas, como testes de diagnóstico que permitam definir algum tipo “passaporte imunitário”, terapêuticas específicas e ágeis e/ou uma vacina que finalmente “mude o jogo”.
A este novo “viajante do desconfinamento” que será, numa fase muito inicial, sobretudo um viajante de motivação emocional-familiar e de trabalho, colocam-se de forma muito simples três grandes questões: Até que ponto e como me é permitido partir? A viagem em si é segura? O destino é seguro e poderei voltar quando o pretender? As respostas a todas estas questões estão em fluxo constante. A resposta à segunda pergunta passa muito pelas considerações relacionadas com as viagens de avião.
Tal como na sucessão de acontecimentos que levaram à necessidade de confinamento, também um dos principais problemas no desconfinamento é a vaga constante de informação que nos assola e que torna para o viajante comum muitas vezes excessivamente difícil uma tranquila ponderação da relação benefício-risco das suas decisões. A OMS cunhou um termo divulgado pelo Lancet e que descreve bem esta realidade: infodemia (1)
Tendo em conta as complexidades infodémicas e a natureza altamente dinâmica da evolução dos conhecimentos e decisões regulamentares que podem afetar uma decisão de viagem nos próximos meses, talvez o mais útil e produtivo nesta fase seja munirmo-nos de um número limitado mas robusto de fontes idóneas, fiáveis e abrangentes que mantenham conteúdos permanentemente atualizados facilmente acessíveis.
No que toca às viagens aéreas, será oportuno destacar duas instituições de referência: a IATA (Associação Internacional do Transporte Aéreo) e a EASA (Agência Europeia de Segurança da Aviação).
A IATA, organismo que congrega a aviação comercial de linha aérea e estabelece padrões de qualidade, propõe atualmente para a retoma uma abordagem em múltiplas camadas (multilayered). A ideia é, através de diversos estratos de mitigação do risco que se complementam uns aos outros, conseguir um somatório final que garanta segurança durante as viagens aéreas. Estas multicamadas podem incluir:
- Pré-Viagem – ex.: reservas e check-ins virtuais, informação prévia ao passageiro para melhor poder colaborar com as medidas preventivas e de segurança de todas as etapas da viagem.
- Aeroportos – ex.: uso de máscara desde a entrada na aerogare, processos o mais possível contactless, self-checkin, autonomia para deposição e recolha de bagagem, maior disponibilização de pontos para lavagem ou desinfeção das mãos, fluxos de circulação que facilitem o distanciamento físico desde a Segurança e os Passaportes até ao Embarque, outras medidas dissuasoras da viagem de pessoas doentes como eventuais rastreios de temperatura, questionários de saúde (preferencialmente desmaterializados), etc.
- Aviões: De base, as aeronaves de linha aérea possuem sistemas de filtração do ar com filtros HEPA (high efficiency particulate air) que filtram 99,993% dos vírus e bactérias do ar ambiente, incluindo os diferentes tipos de coronavírus. Por outro lado, a ventilação da cabine faz-se por secções “verticais” o que não facilita a circulação extensiva de partículas. Adicionalmente, as companhias aéreas têm vindo a reforçar os seus processos de limpeza e higienização, em frequência e profundidade. O risco de transmissão durante o voo pode ainda ser limitado pelo uso de máscaras por passageiros e tripulantes, eliminação ou simplificação do catering e limitação da movimentação na cabine. A redução do risco de base resultante do somatório destas medidas pode ser considerável mas, mesmo assim, quando há um caso suspeito a bordo (de COVID-19 ou de outra doença infetocontagiosa potencialmente grave), as tripulações têm treino e procedimentos específicos para promover o melhor isolamento possível.
Talvez por fatores como estes, após quase meio ano de contingência internacional e volvidos milhões de infeções em todo o mundo, o número de casos atribuíveis a viagem de avião é extraordinariamente pequeno. O Medical Advisory Group da IATA mantém uma discussão atualizada sobre as diversas estratégias de mitigação que têm vindo a ser alvitradas ao longo do tempo (2). As recomendações propriamente ditas (3) estão acessíveis na página da IATA.
A EASA, enquanto organismo regulador da segurança aérea civil no espaço europeu, tem vindo a produzir orientações também no âmbito da COVID-19. Em conjunto com o ECDC, emanou muito recentemente uma primeira edição de um documento de referência (COVID-19 Aviation Health Safety Protocol Guidance) que resume as orientações relativas a passageiros de linha aérea (4).
Estamos num momento em que precisamos de voltar à normalidade das nossas conversas de café mas em que precisamos também de não nos reger por elas no que toca a avaliação de risco e tomada de decisões. Informação acessível, precisa, atualizada e fiável é uma ferramenta básica de sempre para as Consultas do Viajante. As fontes de interface com a Medicina Aeronáutica não são exceção.
Rui Pombal
Membro SPMV
Presidente SMAPor (Sociedade Científica Médica Aeroespacial) www.smapor.pt
Saber mais:
(1) Infodemia - conceito e discussão em:
https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30379-2/fulltext
(2) IATA - Medical Advisory Group - discussão atualizada sobre as estratégias de mitigação em:
https://www.iata.org/contentassets/f1163430bba94512a583eb6d6b24aa56/covid-medical-evidence-for-strategies-200602.pdf
(3) IATA - Medical Advisory Group - recomendações médicas para as viagens de avião em:
https://www.iata.org/en/programs/safety/health/diseases/
(4) EASA e ECDC: COVID-19 Aviation Health Safety Protocol Guidance, em:
https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/covid-19-aviation-health-safety-protocol
Outras referências com interesse:
- A página do CDC sobre COVID-19 e viagens:
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/travelers/index.html
- Uma pagina sobre o “estado dos céus” na Europa, que mostra graficamente o quanto o tráfego está reduzido e a sua alteração progressiva com a retoma:
https://www.eurocontrol.int/covid19 .
- Conselhos gerais do ECDC para planeamento das viagens:
https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/poster-covid-19-plan-your-journey
- SMAPor: Orientações para critérios de Autorização de Embarque para Passageiros Doentes e Incapacitados em geral:
https://smapor.com/files/doc_22-pKgnprM4.pdf
FICHA TÉCNICA
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