Ano 5 | Nr.60 | jul-ago 2020
Editorial
Reflexões sobre seis meses sem medicina do viajante
Passados 6 meses desde o início da pandemia, todo o Mundo está farto e cansado de ouvir, ver, pensar e sofrer covid-19. Cansados e fartos da mudança da nossa realidade, do nosso dia-a-dia. Mas muitos de nós, muitos dos que também fazem medicina do viajante, os que estão na linha da frente, esses, não só estão cansados e fartos: estão exaustos. O meu pensamento e o meu enorme respeito por todos os colegas que sentem, diariamente, a pressão covid-19 na vida profissional (e, para muitos, com graves repercussões na sua vida privada), O meu especial reconhecimento pelos colegas da saúde pública, não só na linha da frente como também no terreno, no difícil terreno das diferenças sociais, das diferenças de opinião, das informações científicas incompletas, incorretas e contraditórias, da enorme e continuada falta de recursos.
Nunca, na história da informação científica médica, ela foi tanta, tão frequente, mas tão frágil e volátil. O que é afirmado hoje é negado amanhã. Qualquer tema pode entrar num ciclo de verdadeiro/falso continuado, potenciado pelos media, pela política, pela opinião pública. Filtrar essa informação, dar-lhe o valor científico firme de que necessitamos para atuar é extremamente difícil para quem decide e quem implementa. No controlo da pandemia, o desgaste destes 6 meses está a resultar em algumas decisões político-sanitárias, umas completamente infelizes, outras no mínimo controversas. A influência da política e da economia nas opções epidemiológicas ajuda ao aparecimento de movimentos populistas de contestação a regras cientificamente comprovadas (das poucas que são firmes). Preocupante é o facto da recente contestação anti-máscara estar claramente baseada nos comportamentos repugnantes e criminosos de bem conhecidas figuras máximas desse populismo.
A medicina do viajante limitou-se ao mínimo essencial durante estes meses. O fecho de fronteiras, as limitações à mobilidade das pessoas, os riscos de proximidade nos aeroportos e aviões, reduziu as viagens entre países em repatriamentos ou voos humanitários. A medicina do viajante ficou, igualmente, confinada.
O aliviar das restrições à mobilidade acompanhou a procura de consultas de viajante. Mas sempre diretamente relacionada com a covid-19 e com as limitações a ela associadas: os nossos primeiros viajantes não eram pessoas preocupadas com os riscos das doenças endémicas com que pudessem contactar, mas que apenas procuravam a prescrição para fazerem o teste de pesquisa de SARS-CoV-2, exigido pelas autoridades locais para a entrada nesse destino. E, neste momento, se mais pessoas estão a viajar, grande parte do tempo da consulta é dedicado às formas de evitar a infecção por coronavírus: aeroportos, aviões, obrigatoriedade de testes, como gerir entradas em diferentes países, os números e tendências da infeção nos destinos. O aconselhamento sobre os riscos de outras doenças transmissíveis, esses, são encarados, pelo viajante, de forma muito mais ligeira e com muito menos importância. Mas claro, se houver vacinas, sempre se faz...
Paradoxalmente, num tempo em as pessoas nos pedem aconselhamento ou são informadas sobre os riscos de uma viagem ao supermercado, sugiro que utilizemos esses conceitos (da perceção do risco) nas nossas consultas de medicina do viajante: saber como se comportar e como prevenir ativamente a infeção por SARS-CoV-2 é exatamente a mesma atitude que se pede em relação à malária, às doenças por águas e alimentos, e todas as outras doenças do viajante para as quais não existem vacinas.
Com uma perspectiva sombria para os próximos tempos no que se refere à epidemiologia da covid-19 a nivel global, também a medicina do viajante continuará a estar muito afectada pelas limitações de mobilidade entre regiões e países. Uma (nova) normalidade, no entanto, terá que surgir. E partilho convosco a minha esperança de podermos, em meados do próximo ano, incluir mais uma vacina nas nossas recomendações de vacinas do viajante: a vacina contra a infeção por SARS-CoV-2.
Jorge Atouguia
Presidente da Direção
Atualidades na Medicina do Viajante
Num tempo em que as notícias cobrem sobretudo as infeções por SARS-CoV-2, e em que as viagens são raras, informação sobre surtos epidémicos e situação epidemiológica de doenças endémicas é bastante limitada.
No entanto, nas últimas semanas ainda foi possível identificar:
. No início do Verão, o aumento de casos de Encefalite Europeia por Picada de Carraça em França (transmissão por via oral), Reino Unido, Suíça e Alemanha;
- Os casos de infeção por vírus West Nile (WNV) na Europa: até 20 de Agosto de 2020, os Estados-Membros da UE notificaram 66 casos humanos de infecção por WNV e 6 mortes: Grécia (39, incluindo 6 mortes), Itália (19), Espanha (6), e Roménia (2). Portugal notificou um caso, num equino.
- Um casos recente de malária por P. vivax na Grécia
- A continuação do surto de Ebola na República Democrática do Congo, província de Equateur, com mais de 120 casos e mortalidade próxima dos 40%
- O aparecimento continuado de casos de sarampo, por diminuição global das rotinas de vacinação periódica, em diferentes zonas do globo (África, Ásia, Américas). No entanto, pela positiva, o Sri Lanka e as Maldivas tornaram-se nos 2 primeiros países da região do Sudeste Asiático da Organização Mundial da Saúde a eliminar o sarampo e a rubéola antes da meta programada, em 2023.
PUBLICAÇÕES SELECCIONADAS
Linka K, Peirlinck M, Sahli Costabal F, Kuhl E. Outbreak dynamics of COVID-19 in Europe and the effect of travel restrictions. Iken O, Abakporo U, Ayobami O, Attoye T. COVID-19: Travel health and the implications for sub -Saharan Africa. Travel Med Infect Dis. 2020;35:101645. Daon Y, Thompson RN, Obolski U. Estimating COVID-19 outbreak risk through air travel. J Travel Med. 2020;27(5):taaa093. Franco-Paredes C, Villamil-Gómez WE, Schultz J, et al. A deadly feast: Elucidating the burden of orally acquired acute Chagas disease in Latin America - Public health and travel medicine importance [published online ahead of print, 2020 Jan 29]. Travel Med Infect Dis. 2020;101565. Shlim DR, Connor BA, Taylor DN. What Will Travel Medicine Look Like in the COVID-19 Pandemic Era? [published online ahead of print, 2020 Aug 28]. J Travel Med. 2020;taaa148. Asadi S, Wexler AS, Cappa CD, Barreda S, Bouvier NM, Ristenpart WD (2020) Effect of voicing and articulation manner on aerosol particle emission during human speech. PLoS ONE 15(1): e0227699. David Peres, José Pedro Boléo-Tomé, Gilda Santos (2020) Respiratory and Facial Protection: Current Perspectives in the Context of the COVID-19 Pandemic. Acta Med Port 2020 Sep;33(9):583-592 |
FICHA TÉCNICA
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