Ano 7| Nr.80 | nov 2022
Editorial
Raiva, o possível retorno de uma doença mítica?
Há doenças, a maioria delas de origem microbiana, que se tornaram verdadeiramente míticas na História do Homem. A grande maioria delas (lepra, peste, sífilis, tuberculose, poliomielite, cólera, etc.), embora continuem a ser motivo de alguma preocupação, sobretudo nalguns contextos epidemiológicos mais ou menos restritos, estão hoje bem longe de ter o impacto de tempos idos, mercê dos avanços científicos conseguidos no último século (melhoria das condições sanitárias, estratégias de imunização e antimicrobianos). O mesmo se poderia pensar da Raiva, cujo início do seu controlo, enquanto problema de saúde pública, se ficou a dever à insigne figura de Louis Pasteur, um notável cientista que, sendo um bioquímico de formação, propiciou à Medicina avanços dificilmente igualados pelos médicos.
Se bem que cerca de 95% dos casos de raiva humana sejam devidos à mordedura do cão doméstico, outros canídeos, e, mesmo, outros mamíferos (por exemplo, os símios) podem propiciar a transmissão desta terrível doença que causa, ainda, em alguns países em vias de desenvolvimento (sobretudo na África Subsariana e no subcontinente Indiano), mais de 50.000 mortes anuais segundo estimativas da OMS. Se bem que estejam descritos casos pontuais de infeção transmitida através de transplante de órgão realizado no âmbito do denominado turismo médico nos mesmos países onde a doença é endémica, outra realidade deveria merecer, contudo, a nossa atenção.
É sabido que o outro reservatório importante deste vírus são os morcegos, animal que tem sido cada vez mais incriminado na disseminação de diversas doenças classificadas como emergentes. Sendo logicamente difícil de ter um controlo estrito sobre o mesmo, dada a sua grande mobilidade e ao facto de habitar nichos ecológicos relativamente recônditos, este facto aumenta a atualidade desta preocupação, sobretudo depois da publicação de estudos que os nossos vizinhos espanhóis efetuaram e nos quais se noticia o isolamento de novos lissavírus anteriormente desconhecidos para a ciência.
Sabendo-se que tal não se passa em Portugal e que algumas antigas minas já sem exploração ativa de minério estão presentemente a ser utilizadas para fins turísticos ou para estagiar vinhos de alguns afamados produtores, e tendo eu constatado recentemente que as entidades que as detêm são muito zelosas na preservação das suas colónias de morcegos, mesmo sabendo-se que existem muitas espécies e que nem todas são passíveis de serem infetadas, não seria prudente fazer como os nossos vizinhos espanhóis, tendo em consideração que as fronteiras administrativas e diplomáticas não impedem a passagem dos microrganismos e dos seus reservatórios ou vetores de uma lado para o outro?
Não poderá o mesmo acontecer, por exemplo, com a infeção de Congo-Crimeia, da qual têm sido reportados casos que têm acometido os aficionados da atividade venatória, tão praticada nas zonas fronteiriças dos dois países ibéricos? É que, neste caso, ainda bem que temos o Programa REVIVE do CEVDI/INSA que nos poderá indicar a existência de vetores infetados antes de existirem casos humanos! E com a Raiva e os morcegos, pergunto? Não nos estaremos a tornar vulneráveis, por omissão de uma vigilância ativa que seria importante implementar?
Aqui fica o desafio e o alerta.
José Poças, MD
Diretor do Serviço de Infeciologia do Centro Hospitalar de Setúbal (CHS)
Atualidades na Medicina do Viajante
Listeriose - Surto em Espanha, Andaluzia
Entre julho e outubro de 2022 um surto com 207 caso confirmados foi identificado na Andaluzia. A maior parte (n=154) foram gastroenterites ligeiras, mas 141 (68%) necessitaram de hospitalização e 3 pessoas morreram; 5 das 34 mulheres grávidas infetadas tiveram abortamento. O alimento implicado no surto foi porco recheado, de um só produtor onde foi possível detetar Listeria monocytogenes_ ST388. A notificação dos casos diminuiu abruptamente com a implementação de medidas de controlo que incluíram a retirada de alimentos contaminados, protocolos de orientação clínica nos casos suspeitos e profilaxia pós exposição em grávidas e campanhas de sensibilização e esclarecimento pelos meios sociais junto da população. Este pode ser o maior surto de Listeriose alguma vez reportado na Europa com 3.059 casos prováveis.
Tripanossomíase da américa latina (Doença de Chagas) associada a consumo de açaí
Na zona de Belém durante meados de novembro 2022 foram reportados 11 casos com sinais e sintomas da doença cujo diagnóstico foi confirmado; todos tinham ingerido açaí. Há outros casos ainda em investigação. Belém é o município brasileiro que regista o maior número de casos de doença aguda em todo o Brasil. A Doença de Chagas continua a ser um problema de saúde pública sério no Brasil e noutras zonas da América Latina, em particular na região amazónica. A ingestão acidental de alimentos contaminados, em particular sumos de fruta, tem vindo a ser uma forma de transmissão cada vez mais importante da Doença de Chagas, classicamente transmitida quando os triatomíneos infetados mordem e defecam na pele humana e noutros animais, introduzindo o Trypanossoma cruzi na corrente sanguínea.
FICHA TÉCNICA
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