Ano 8| Nr.86 | jul-ago 2023
Editorial
O impacto das alterações climáticas na Medicina de Viagem
As alterações climáticas destacam-se entre as principais ameaças do século XXI à saúde humana. Variações significativas nos extremos de temperatura, precipitação intensa e períodos de seca severa influenciam a taxa de replicação dos microrganismos, dos vetores e a sua interação com os hospedeiros, com repercussão na distribuição espacial e temporal das doenças infeciosas. O impacto das alterações climáticas exacerba-se ainda na presença de fatores de vulnerabilidade geográfica, socioeconómica ou sociopolítica, que resultam numa heterogénea exposição e risco de infeção entre comunidades.
Perante o aumento da temperatura e o prolongamento da estação das chuvas nas áreas tropicais de África, é expectável que o vetor Anopheles expanda a sua cobertura geográfica e se prolongue o período de maior transmissibilidade da malária. Mas esta alteração na adequação climática terá repercussões em toda a sua área epidémica, com potencial expansão para áreas de clima mais temperado; mesmo em altitudes mais elevadas já é possível encontrar malária, em períodos de maior calor. É notável a expansão geográfica apresentada pelo mosquito Aedes, ameaçando atualmente quase metade da população mundial, algo atribuível em parte ao aumento global da temperatura. Dada a associação positiva entre a incidência de dengue e a temperatura e precipitação, é compreensível a expansão na sua área e período de maior transmissibilidade, com modelos estatísticos a prever o atingimento europeu, bem como um incremento em regiões como o sudeste dos Estados Unidos da América e a costa este da Austrália. Pela partilha de vetor, é também expectável um aumento potencial do risco de chikungunya e zika; relembre-se o grande surto de zika na América do Sul em 2016, após um período de calor intenso e seca severa. Mas de entre as doenças transmitidas por vetor, destaca-se a febre do Nilo Ocidental pela esperada expansão em território europeu, incluindo uma possível presença nacional. Temperaturas mais elevadas prolongam a estação de reprodução do mosquito Culex e aceleram o período de incubação extrínseco, podendo justificar o expectável aumento na incidência da doença.
No Canadá, o incremento da temperatura associou-se a uma expansão geográfica da carraça Ixodes. O consequente rápido aumento no número de casos de doença de Lyme obrigou à formação dos profissionais de saúde, dada a raridade prévia em algumas regiões. Na Europa, primaveras mais quentes e outonos menos rigorosos associaram-se a uma expansão da cobertura espacial da encefalite da carraça, com tradução numa incidência crescente. As alterações climáticas já afetaram também a distribuição europeia da mosca da areia, com um crescimento da leishmaniose para norte e para altitudes mais elevadas.
Episódios de cheias associadas a precipitação intensa ou fenómenos climáticos extremos como furacões têm-se verificado de forma crescente a nível global. O risco de surtos de infeção associados à contaminação de água ou alimentos exacerba-se ainda na presença de fatores de vulnerabilidade como saneamento precário, mais frequente em países em desenvolvimento ou com instabilidade militar, sendo um exemplo clássico a cólera. Por outro lado, o calor repercute-se em padrões comportamentais que se podem associar a maior risco de infeção, nomeadamente através de um consumo alimentar mais impulsivo, ou pela utilização de águas paradas potencialmente contaminadas com leptospirose para uso recreativo.
A prevenção de um agravamento das alterações climáticas é uma forma de promover a saúde. A compreensão do seu impacto atual deve motivar não só uma rápida adaptação dos serviços de saúde, mas também a instituição de medidas de modificação dos fatores de vulnerabilidade que comprovadamente amplificam o risco de exposição das comunidades às doenças infeciosas. Só assim será possível prevenir o seu potencial impacto na saúde pública global.
António Carujo
Serviço de Doenças Infeciosas, Centro Hospitalar Universitário de Santo António, Porto
Atualidades na Medicina do Viajante
Leishmaniose no México
Um aumento incomum de casos de leishmaniose foi reportado pelas autoridades mexicanas durante este ano, particularmente na península de Yucatan, tendo sido reportados 841 casos até junho.
Febre hemorrágica da Crimeia-Congo em vários países
Foi reportado um aumento significativo de casos de febre hemorrágica da Crimeia-Congo no Iraque, Irão e Afeganistão, com um número relevante de casos fatais. Os fatores associados a este aumento da infeção foram relacionados com o abate ilegal de animais, matadouros com parca higiene e deficiente controlo do vetor. Na Turquia também foram reportados 41 casos com 2 óbitos na província de Corum.
Malária na Índia
Foi reportado um aumento do número de casos de malária na Índia nos últimos 3 meses, na região sudeste, a norte de Chennai, apesar de estar relacionado com comunidades tribais dessa região. As razões para este aumento, segundo as autoridades de saúde locais, poderão estar relacionadas com o controlo inadequado do vetor e acesso reduzido a cuidados médicos adequados. Não há registo de óbitos.
Poliomielite no Burkina Faso
A Global Polio Eradication Initiative reportou a 5 de julho um caso de poliomielite no Burkina Faso.
Dengue em Taiwan e no Sri Lanka
Foram reportados pelas autoridades de saúde de Taiwan 125 casos de dengue nas últimas semanas, quase todos na cidade de Tainan. Apesar do número elevado de infeções ressalvaram que o país está na época de maior transmissibilidade, com temperaturas elevadas e chuvas abundantes, estimulando a reprodução do vetor.
As infeções por vírus da dengue no Sri Lanka também aumentaram exponencialmente, com números a ultrapassar os 50000, só num mês.
Encefalite da carraça em França e na Eslováquia
As autoridades de Saúde francesas reportaram 71 casos de encefalite da carraça entre maio de 2021 e maio de 2023. Destas infeções, 61 foram adquiridas em França e as restantes em outros países. Apesar da maioria dos casos terem sido admitidos no hospital, não houve nenhum óbito. Na Eslováquia houve também um aumento desta infeção, com 85 casos a serem reportados desde o início do ano. As autoridades de saúde eslovacas atribuem este aumento ao consumo de lacticínios não pasteurizados e baixa taxa de vacinação da população.
FICHA TÉCNICA
|